H.Mourato

H.Mourato

terça-feira, 9 de setembro de 2014

A Guerra


A Guerra 1

Quando decidiram deixá-lo ali acharam que o assunto estaria, em breve, resolvido. A guerra já dominava todos os espaços e localidades. Um branco descalço e de calções quase desfeitos morreria ás mãos dos guerrilheiros, isto se conseguisse chegar a um qualquer lugar habitado naquele descampado. No começo do êxodo ninguém sabia muito bem o que fazer e a quem confiar os doentes mentais, os prisioneiros, os que, sem memória e em depressão profunda, deixariam de ter quem os cuidasse. A muitos abriram as portas das cadeias e dos hospícios e deixaram de os vigiar para os estimular à fuga. Deambulavam como almas penadas pelos jardins e dormiam onde calhava. Nem comida, nem água, nem qualquer tipo de apoio. A outros, transportavam em viaturas abandonadas um pouco por todo o lado na direção de Missões religiosas obrigando-os a seguir novos destinos. Com aquele, porém, nada havia a fazer. Estava demasiado doente para ser salvo e a casa dos padres fora queimada na véspera sem que ninguém soubesse. Estava fora de questão trazê-lo de volta à cidade por ordem expressa do sargento e, avançar no caminho procurando uma alternativa, era impossível por apenas haver gasolina para o regresso. Empurraram-no para a estrada e jogaram-lhe o cobertor sobre o qual dormiu quando, estafado e faminto, se deitou na berma do caminho.

Ninguém parava para pensar em questões de moral, no certo ou errado das atitudes. Tudo era violento, sujo, precário e aflitivamente imperioso. Correr para sobreviver, misturar-se à terra e ao capim para obter proteção, mentir e trair para avançar contra as regras, roubar para comer, matar se fosse preciso.

O homem acordou quando o novo dia já se anunciava. A estrada acabava a seguir e um trilho sinuoso era tudo o que os seus pés aceitavam para continuar a marcha sem destino. O orvalho enchera de gotículas as folhas dos arbustos que o homem lambeu para acalmar a sede. Foi então que escutou o choro da criança. Pouco mais de três anos teria e agarrava-se ao cadáver da mãe num pranto cansado. O homem rolou o corpo e descobriu a comida numa saca de lona e leite azedo na cabaça que a mulher transportava à cabeça quando a abateram. Recolheu o óleo de palma, as bananas bem como o peixe seco e a farinha de milho, agarrou a criança e saiu do caminho para obter mais proteção. Dali para a frente seriam dois a enfrentar o sol, as moscas e o zumbido forte das cigarras. A criança dormia sobre o cobertor acalentada pelos movimentos do adulto. Quando encontraram o rio e se alojaram numa palhota parcialmente destruída, o homem acendeu o lume usando fósforos que trazia no bolso dos calções e cozinhou. Com capim seco fez a cama para a criança e aconchegou-a até ambos adormecerem, exaustos. Ao longe o pipocar dos tiros nunca deixara de se ouvir e o riso agreste das hienas rondara o local.

O dilema do homem era decidir se procurava socorro junto da comunidade negra ou se deveria esconder-se dela. O medo era como uma pele que exaltava os seus sentidos e o fazia, instintivamente, abandonar o torpor em que o mergulhava a medicação. Algumas imagens fortes voltaram ao seu espírito. Sangue, gritos, imprecações na luta e, mais tarde, a enfermaria no hospital, semanas depois de tudo ter acabado e não restar nenhum camarada nem rosto conhecido. Alheara-se das conversas e deixara de se interessar pela vida quando soube ser o único sobrevivente do pelotão. Todos os seus atos, daí para a frente, passaram a ser ditados pelo pessoal da enfermaria ou cheios de um automatismo peculiar. Era como se o espírito tivesse desistido de ficar naquele corpo debilitado e como se, de um jovem mancebo saudável, só restasse um boneco de carne, sem emoções ou sentimentos.

Não sabia a sua identidade e o nome pelo qual o chamavam era ou tornara-se estranho. A memória passou a ser um quarto branco, vazio, sem cheiros, sem sons e sem significado onde entrava até não suportar mais a dor de cabeça. Dormia muito depois de o forçarem aos tratamentos e depois dos banhos em água gelada. O tempo perdeu sentido. Ele caía sempre numa espécie de poço sem fundo, cada vez mais distante de tudo e de todos. Até ontem.

Agora, sem comprimidos nem injeções, tirando a tremura dos dedos e aquela vontade de fugir sem saber de quem ou de quê, sentia-se mais atento às coisas e mais motivado. Vivia aterrorizado mas precisava de comer, beber e sobreviver e a criança também. Daí que procurasse as frutas silvestres e as macerasse para suavizar a alimentação do menino que parecia confortável na sua companhia. Na verdade não sabia do seu jeito para cuidar de crianças, nem da sua vontade de, apesar das dificuldades, proteger aquela. O pequeno articulava poucas palavras no dialeto local de que o homem aprendera algumas frases mas nada que facilitasse o convívio entre ambos. Resolveu, consequentemente, juntar os sons das duas linguagens e gesticular, coisa que parecia divertir o menino. Resolveu, também, transportá-lo às costas num velho cesto de vime que prendia ao peito, sempre que era preciso ir à água, tomar banho, limpar o petiz ou pescar com o cone de palha achado na cubata isolada. Ficaram ali até que a comida, criteriosamente poupada, acabou de vez.

Importava procurar ajuda, entregar a criança a alguém mais capaz de cuidar dela mas um indizível terror se apoderava dele sempre que pensava nisso. Há já três dias que só comiam peixe do rio e frutos do mato. A água era boa mas captá-la implicava sair do abrigo e poder ser apanhado. Ao tempo todos os grupos lutavam uns contra os outros. A política e o racismo justificaram mortes, sevícias, ódios e muito sofrimento. Ninguém se respeitava e, novos ou velhos, crianças ou animais, poderiam ser alvo da sanha assassina. Todos detestavam ou hostilizavam os brancos e ninguém estava livre de ser, por motivos fúteis, abatido. A razão acabou por impor o recomeço de uma caminhada pelos trilhos mais lisos em curtas caminhadas ao alvorecer. À noite, sob barracas improvisadas feitas com ramos e folhas e cobertos com a manta, adormeciam à roda de uma fogueira que os defendia de feras mas que poderia denunciá-los. Não havia alternativa.

Cansado, com os pés feridos e a criança a acusar sintomas de doença febril o homem desejou que alguém aparecesse e pusesse um ponto final na sua angústia. Nessa noite, ansioso para atrair alguém, fez maior a fogueira, assou peixe e adormeceu ao relento logo que o menino deixou de gemer. Acordou com o ladrar de um cão e o foco de uma lanterna sobre si. O negro erguia a catava para o golpe quando se apercebeu da presença da criança que o branco abraçava e tentava proteger com o corpo. Gritou para quem o acompanhava e, em breve, uma mulher erguia o menino e o homem era apertado com perguntas a que não sabia responder. Repetia as frases que sabia e misturava-as com o português. A criança chorava a plenos pulmões e recusava o colo da negra estendendo para ele os bracitos. Foi isso que determinou a sua sorte. Mais cordiais, indicaram-lhe o caminho de uma casa de adobe e zinco e, poucos minutos depois, todos se reconfortavam com comida fresca e chá quente. Aquela era a morada do pastor evangélico e ali viviam outros colaboradores da Missão destruída.

Continuava a ser branco e doente, frágil dos nervos e amnésico, mas estava pronto para merecer a proteção que ali lhe ofereciam a troco de serviços e empenhamento nos objetivos da Missão. Recuperar os edifícios, limpar os espaços, cozinhar o que lhe trouxessem improvisando métodos e receitas. Dispensaram-no dos cultos feitos no recôndito da casa. A sua cabeça retinha o nome pelo qual era chamado e não sabia em que acreditava, nem como perdera todas as suas referências.

Uma noite, porém, acordou na sua esteira alagado em suor. Ouvia, mais uma vez, o barulho das bazucas, o canto das metralhadoras e os gritos dos que caíam sob a fúria das balas. Misturado com os cadáveres escapara para presenciar as catanas a acabar com a vida dos que, caídos, já não constituíam perigo para ninguém. Era a guerra em todo o seu horrendo esplendor!

E gritou. Gritou até que todos o rodearam na tentativa de o acalmar. A sua memória acabara de voltar: Não sabia como fora recolhido mas tinha lembrança do hospital e dos tratamentos. Chamavam-no Mangualde mas só por ser esse o nome referido pelos colegas de um outro pelotão. Era assim que o designavam nas disputas do futebol, mas o seu real nome todos desconheciam. Mangualde sabia agora que era natural daquela localidade da Beira Interior, que o seu nome era Filipe Mendonça e que ele e os companheiros haviam caído numa emboscada nos arredores do Huambo. Estavam todos mortos, excepto ele. A recordação Fê-lo chorar, convulsivamente, durante muito tempo.

Passaram alguns meses. Agora haveria a possibilidade de embarcar num cargueiro que sairia do Lobito. Iria clandestino mas recusava-se a deixar o menino e haveria de enfrentar a viagem até ao porto de embarque antes do final do mês seguinte. Foi duro convencer o pessoal da Missão a concordar com ele e a ajudá-lo a seguir o seu destino e isso só aconteceu depois de concluírem que a família da criança morrera toda na guerra. Aquele menino teria um novo nome e outra família logo que chegassem a Portugal mas, antes, de carro ou a pé, sempre escondidos, enfrentaram uma viagem recheada de perigos. Chegaram ao cais do Lobito a bordo de uma caminhoneta de fardos de sisal na véspera da saída do barco e recolheram-se no porão da embarcação até que, em alto mar, Filipe voltou a sentir-se vivo, livre e esperançado no futuro.

Passaram-se mais de trinta anos. Raul Mendonça, o filho adotivo de Filipe, licenciado em medicina, casado e já pai de uma bela menina, vai trabalhar para Angola e vai morar na antiga Missão com a sua família. Filipe Mendonça, que nunca casou, volta a África com o filho, a nora e a neta. Todos esperam ser felizes por lá.

FIM

Edgardo Xavier.
Publicado RDL ,2008
Ilustração de H. Mourato