H.Mourato

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segunda-feira, 16 de junho de 2014

Opinião de Edgardo Xavier



Fazendo o périplo das galerias, assíduo no Chiado ou a pontificar em roda de amigos, Henrique Mourato é sempre notável dos lugares que frequenta.

Humilde mas com imponente figura, de palavrão ousado e brejeirice como sinal de um temperamento vincadamente português, porque muito vândalo, alano, suevo, franco, godo, grego, romano, celta, negro, ibero, lusitano e cartaginês, costuma marcar a ferro e a fogo as conversas e os interlocutores.

Brusco ou suave no esplendor da sua humaníssima forma de ser e de estar, H. Mourato é um paradoxo vivo ou, se quisermos, um escândalo com pernas, braços e a vivacidade de um olhar permanentemente empenhado e feliz. Nisto faz flagrante contraste com a introversão geral, pelo que brilhar é um destino que assume com tenacidade nunca isenta. Para além de tudo isto, importa referir ser «a fera» um pensador inveterado e dono de uma ironia sempre cáustica, despudorada e solta. Neutralizamos os malefícios deste retracto acrescentando, por ser de inteira justiça, a verticalidade que Ihe tem granjeado a admiração e o respeito dos que o conhecem para lá das graças pesadas ou das tiradas, quase ferozes, com que usa brindar, sobretudo, os que ama.

A visão do mundo por H. Mourato, o desenhador, o pintor, o gráfico e o escultor é, con­sequentemente, ímpar. Difícil se torna, portanto, analisar-lhe o talento multifacetado que o re­flecte com genuína autenticidade. Evitando estabelecer paralelos com arquétipos da Arte Contemporânea, fica-se sem essa preciosa muleta e, assim, o que nos resta é a narrativa de um caso que, oscilando ao sabor de tantas vertentes, a si próprio se permite variar, em género e qualidade. Há obras que traduzem grandes momentos e há as que, produzidas em jeito mais leviano, não nos dão a escala e a importância deste autor.

       Notabilizado, entre outras, pelas ilustrações feitas para os escritos de Jorge Listopad, H. Mourato expressa-se, com particular fluência, através do desenho predominantemente satírico e surrealista.

De imaginação muitas vezes prodigiosa e capaz de grande rigor nas observações que constituem a base dos seus mecanismos de criação, este artista plástico cultiva a exuberan­cia como uma imagem de marca emprestando a toda a sua produção uma vivacidade formal e cromática característica, ainda quando aborde temas cruciais para o Homem, a Sociedade e o Planeta.

O meio em que se formou e cresceu era íntimo e propiciava intervenções que o conhe­cimento e o afecto particularizavam. Hoje, sem tempo para absorver as mutações geradas pelo vertiginoso avanço da Ciência, reage como qualquer dos comuns mortais. Perante a al­teração dos comportamentos quem consegue ficar indiferente ao pânico, esse reverso da medalha cuja face nos mostra as vantagens da globalização?

Reagindo como o herói de Jacques Tati, HenrIque Mourato refugia-se então na ironia e é a gargalhada que Ihe trava o medo, o apelo ao sexo que Ihe mascara ou inibe o inexorável dramatismo das conclusões.

Aparentemente simplista, este autor remete-nos para a essência das coisas revelando­-nos, sempre e apenas, a vertente absurda das soluções. Através do trocadilho redutor em que se oculta e com o qual nos leva a sublimar a angústia existencial que Sartre também ex­perimentou, percebe que o homem de hoje, liberto das amaras que ainda o ligam ao trans­cendente, fica preso a uma indescritível solidão na largueza de um universo que diariamente se expande. Não para nos confirmar a esperança mas para nos dizer que, na poeira dos mun­dos, o nosso apelo continua sem resposta.

Estoril, Março de 98

Edgardo Xavier