Fazendo o périplo das galerias, assíduo no
Chiado ou a pontificar em roda de amigos, Henrique
Mourato é sempre notável dos lugares que frequenta.
Humilde mas com imponente figura, de palavrão
ousado e brejeirice como sinal de um temperamento vincadamente português,
porque muito vândalo, alano, suevo, franco, godo, grego, romano, celta, negro,
ibero, lusitano e cartaginês, costuma marcar a ferro e a fogo as conversas e os
interlocutores.
Brusco ou suave no esplendor da sua humaníssima
forma de ser e de estar, H. Mourato é
um paradoxo vivo ou, se quisermos, um escândalo com pernas, braços e a
vivacidade de um olhar permanentemente empenhado e feliz. Nisto faz flagrante
contraste com a introversão geral, pelo que brilhar é um destino que assume com
tenacidade nunca isenta. Para além de tudo isto, importa referir ser «a fera»
um pensador inveterado e dono de uma ironia sempre cáustica, despudorada e
solta. Neutralizamos os malefícios deste retracto acrescentando, por ser de
inteira justiça, a verticalidade que Ihe tem granjeado a admiração e o respeito
dos que o conhecem para lá das graças pesadas ou das tiradas, quase ferozes,
com que usa brindar, sobretudo, os que ama.
A visão do mundo por H. Mourato, o desenhador, o pintor, o gráfico e o escultor é, consequentemente,
ímpar. Difícil se torna, portanto, analisar-lhe o talento multifacetado que o
reflecte com genuína autenticidade. Evitando estabelecer paralelos com
arquétipos da Arte Contemporânea, fica-se sem essa preciosa muleta e, assim, o
que nos resta é a narrativa de um caso que, oscilando ao sabor de tantas
vertentes, a si próprio se permite variar, em género e qualidade. Há obras que
traduzem grandes momentos e há as que, produzidas em jeito mais leviano, não
nos dão a escala e a importância deste autor.
Notabilizado, entre outras, pelas ilustrações feitas para os escritos de
Jorge Listopad, H. Mourato expressa-se,
com particular fluência, através do desenho predominantemente satírico e
surrealista.
De imaginação muitas vezes
prodigiosa e capaz de grande rigor nas observações que constituem a base dos
seus mecanismos de criação, este artista plástico cultiva a exuberancia como
uma imagem de marca emprestando a toda a sua produção uma vivacidade formal e
cromática característica, ainda quando aborde temas cruciais para o Homem, a
Sociedade e o Planeta.
O meio em que se formou e
cresceu era íntimo e propiciava intervenções que o conhecimento e o afecto
particularizavam. Hoje, sem tempo para absorver as mutações geradas pelo
vertiginoso avanço da Ciência, reage como qualquer dos comuns mortais. Perante
a alteração dos comportamentos quem consegue ficar indiferente ao pânico, esse
reverso da medalha cuja face nos mostra as vantagens da globalização?
Reagindo como o herói de
Jacques Tati, HenrIque Mourato refugia-se
então na ironia e é a gargalhada que Ihe trava o medo, o apelo ao sexo que Ihe
mascara ou inibe o inexorável dramatismo das conclusões.
Aparentemente simplista,
este autor remete-nos para a essência das coisas revelando-nos, sempre e apenas,
a vertente absurda das soluções. Através do trocadilho redutor em que se oculta
e com o qual nos leva a sublimar a angústia existencial que Sartre também experimentou,
percebe que o homem de hoje, liberto das amaras que ainda o ligam ao transcendente,
fica preso a uma indescritível solidão na largueza de um universo que
diariamente se expande. Não para nos confirmar a esperança mas para nos dizer
que, na poeira dos mundos, o nosso apelo continua sem resposta.
Estoril,
Março de 98
Edgardo Xavier